Porque me faltam palavras, e saber, transcrevo a crítica de Pedro Boléo no Público:
O Teatro de São Carlos estava cheio (...). Ao intervalo, duas horas depois, as desistências eram muitas. Cerca de metade do público tinha abandonado a sala. A primeira ópera do compositor português é uma co-produção do São Carlos, da Gulbenkian, da Casa da Música e do IRCAM (instituto francês dedicado à investigação e à criação de música contemporânea).As expectativas à volta desta produção eram muitas. Encomenda ainda da direcção de Paolo Pinamonti, Das Märchen (O Conto) passou por algumas peripécias até ao dia da estreia, incluindo vários adiamentos e algumas discussões que vieram a público entre o compositor e o director do São Carlos. Lembrar este contexto e sobretudo o grande investimento institucional nesta ópera é importante para pensar o objecto estético apresentado na sexta-feira. Até porque Das Märchen pode ser vista, entre outras coisas, como uma reflexão (artística) sobre a arte e a sua autonomia. No prólogo que dá início ao espectáculo, fala-se da faculdade da "imaginação", aquela sem a qual a arte não existe. "Ela não se prende a nenhum objecto", diz o libreto. "Ela não faz quaisquer planos, não escolhe nenhum caminho", ouve-se depois. Quem escreveu estas palavras foi Goethe (1749-1832), o autor do conto original em que se baseia a ópera Das Märchen, e uma das figuras centrais do primeiro romantismo alemão. Goethe e Schiller desenharam, desde fins do século XVIII, os contornos da ideia romântica de uma arte autónoma e definiram, nesse processo, a posição do artista, as condições do "livre jogo da imaginação" e as qualidades do génio criador.Mas já não estamos no fim do século XVIII. E é natural que esta enigmática (para não dizer esotérica) ópera de Emmanuel Nunes cause alguma perplexidade. A afirmação da autonomia absoluta do artista e da sua arte independente (no modelo a que alguns chamaram "arte pela arte") em tudo é contradita pela própria natureza da produção operática, e ainda mais neste caso de Das Märchen, onde há música, dança, teatro, projecção vídeo, electrónica ao vivo, cenografia, luz, etc. Embora o nome de autor tenha o peso que se sabe, o criador de Das Märchen não é só Emmanuel Nunes. E a arte na principal sala de ópera portuguesa não está sujeita apenas ao "livre jogo da imaginação dos artistas". Depende do Estado, de patrocinadores que mexem em muito dinheiro (por exemplo o BCP) e de várias instituições culturais. Dirão que estou a fugir ao assunto. Não: o assunto também é este.O problema de Das Märchen não é ser muito grande e ter música difícil para os ouvidos. O problema não é o número de horas que dura. O que há é talvez um excesso de elementos simbólicos, de coisas para olhar, para ouvir, para ler. Tudo na língua germânica, talvez para estarmos mais perto do idealismo alemão, mas transfigurado por uma encenação pós-moderna, em que o excesso simbólico chega a ser disparatado. Karoline Gruber dispara mesmo em todas as direcções, e faz uma encenação infinita nas suas múltiplas relações internas, tal como o intrincado texto de Goethe, jogando com figuras míticas, magias, círculos, terra, fogo, ouro (impossível não nos lembrarmos de Wagner). Brincadeira ou megalomania?O problema da encenação é que não sabe bem o que fazer daquilo tudo. Os corpos estão sempre em movimento (uma coreografia neo-conservadora anda ali pelo meio um pouco à nora), as personagens duplicam-se, as projecções vídeo criam imagens sobre imagens sobre imagens. O resultado mais uma vez é contraditório: tudo se mexe mas há uma sensação de que tudo é estático. Tudo é movimento permanente (como num rio), mas (quase) nada nos prende. Na música, apesar de muito bem interpretada pelo Remix com elementos da Orquestra Sinfónica Portuguesa e alguns bons cantores, acontece o mesmo: há milhões de acontecimentos, de timbres e de jogos rítmicos, mas tudo parece ficar no mesmo sítio e tudo parece equivaler-se. É uma música palavrosa, que fala sem parar (bavarder, em francês, é a melhor palavra para a descrever). Até aí tudo bem. Mas Das Märchen, de tanto querer ser a arte pura que não pode ser, entra numa contradição insolúvel, e opta por fechar-se ao mundo. A encenação tenta dar, na parte final, um salto para outro lugar, depois de uma espécie de "catástrofe". Mas já era demasiado tarde. E fica só isso - a ideia de que não há nada a fazer. É assim e pronto.E quem vê? E quem ouve? Também não pode pensar a ópera a que assiste, porque esta arte se diz impensável. O espectador não pode pegar em nada daquilo que vê e ouve, porque esta arte é arte pura - e querer dar-lhe utilidade é corrompê-la. Podemos então apenas pasmar? O que fica de Das Märchen é uma perplexidade. Ela leva ao extremo as contradições desta arte que se quer pura (e que afinal é tão impura) e os problemas da função da ópera nos nossos tempos, enquanto representação social do poder.